Marx, o Intempestivo: Agendas da crítica crítica

AGENDAS DA CRÍTICA CRÍTICA

Prefácio de Francisco Louçã a «Marx, o Intempestivo», de Daniel Bensaïd


O livro de Daniel Bensaïd que a leitora ou o leitor tem entre mãos foi publicado em 1995, há portanto quase vinte anos. E, no entanto, desde esse momento, que já vai longe, não surgiu a lume qualquer outro estudo da obra de Marx que se lhe compare, nem na capacidade de analisar a construção da coerência do marxismo, nem na ambição de a confrontar com outros pensamentos e contribuições contemporâneas ou «aventuras críticas» posteriores. Poderia ser essa uma recomendação frágil, porventura mais dependente da escassez do marxismo do final de século do que dos méritos próprios da obra, se não se desse que este estudo é marcante pela combinação única de um conhecimento arguto da obra de Marx com uma visão atenta das principais correntes de pensamento moderno na sociologia, na economia e na filosofia das ciências. Não existe, nos debates teóricos do marxismo e da marxologia dos nossos dias, outro livro que tenha a dimensão, a profundidade e a relevância de Marx, O Intempestivo.

Neste livro encontramos uma imensa galeria de personagens e de polémicas, como as que tiveram por alma gente da ordem de Bourdieu, Labriola, Espinoza, Leibniz, Descartes, Korsch, Kolakowsky, Gramsci, Derrida, Godelier, Elster, Brenner, Olin Wright, Lefèbvre, Hegel, Stephen Jay Gould, Balibar, Schumpeter, Sacristán, Adorno, Heidegger, Marcuse, Péguy, Nietzsche, Benjamin, Bloch, Freud, Comte, Blanqui, Lukács, Rawls ou Poulantzas, para nomear alguns dos convocados. Com eles, e por vezes contra eles, Bensaïd analisa três grandes temas críticos: a razão histórica (a teoria marxista não é uma filosofia do sentido da história), a sociologia estrutural das classes (a teoria marxista não é uma categorização empírica da estrutura económica) e, finalmente, a ciência moderna (a teoria marxista não é um positivismo), para delimitar os campos em que o marxismo se desenvolveu e se reconhece.

Nestas notas de prefácio concentrar‑me‑ei nos dois últimos temas, em particular porque são os que neste livro representam uma nova abordagem no percurso e nos interesses teóricos de Bensaïd . Assim, começarei por uma apreciação das grandes fases da sua obra, depois seguirei brevemente os seus principais objetivos polémicos e, finalmente, apresentarei alguns dos temas em que este «Marx intempestivo» abriu caminho.

Uma mudança de ângulo de visão

O primeiro livro publicado por Daniel Bensaïd, este em conjunto com Henri Weber, foi Maio de 68, Ensaio Geral, uma reflexão a quente sobre os acontecimentos e confrontos desse mesmo ano e uma proposta de estratégia revolucionária para uma França e uma Europa que eram abaladas profundamente pela surpresa de uma sociedade farta do situacionismo gaulista e do capitalismo da sociedade de consumo. Os seis livros seguintes foram todos dedicados ao pensamento político: os problemas do movimento estudantil, a revolução portuguesa de 1974, a estratégia política na luta pelo poder, um debate com Michel Rocard, uma análise da teoria leninista e dos conceitos de partido e, vinte anos depois, uma evocação do Maio de 68, escrita com Alain Krivine, seu camarada de armas das lutas do Maio.

A partir de então, este percurso começou a trilhar um novo caminho. Eu, A Revolução, de 1989 – o bicentenário da revolução francesa de 1789 –, recuperava muita dessa reflexão política mas afirmava um estilo literário novo e surpreendente, divertidamente messiânico e autorreflexivo, em nome de uma revolução que, pelos tempos fora, falava de si própria para contrastar‑se com a solenidade de uma república coquete que a comemorava para a esquecer. Joana Cansada de Guerra, de 1991, investia o mesmo estilo num tema dos mais controversos ou alheados da tradição ou do interesse da esquerda revolucionária, a história da paixão de Joana d’Arc, para lhe chamar o que foi. 

Os livros desses anos noventa dedicaram‑se então a um novo ângulo de visão, as ruturas no tempo. Dirão os leitores: pois não era disso mesmo que tratava o tema anterior, sobre estratégia revolucionária? Não é a estratégia a procura de uma rutura no tempo, esse provocar de «saltos», como Lenine rascunhava nas margens do seu exemplar da Lógica de Hegel? Sim, é isso mesmo. Mas é muito mais. É ainda a procura de todas as dimensões em que o pensamento e a experiência confrontam a linearidade do tempo e desafiam a sua permanência. Porque o tempo perturbado, como vamos ver, é mais do que o tempo da política que o perturba: é uma processo histórico de criação de contingências e de resposta a necessidades, como tantos intuíram também fora do marxismo, em particular a partir de Darwin.

Bensaïd começou esse trabalho de reflexão sobre o tempo a partir de Walter Benjamim com a Sentinela Messiânica (1990) e um texto mais abrangente, A Discordância dos Tempos (1995) – o mesmo ano de grande produção em que é também publicado Marx, O Intempestivo. O autor não parava e multiplicava o seu talento e o seu esforço na escrita, ao mesmo tempo que ocupava um papel destacado na direção do seu partido e da IVª Internacional. 

A partir de 1995, os seus livros traçaram este novo caminho: estudos e variações sobre Marx e os marxismos, uma dedicação sem par a ler, conhecer, divulgar e debater um marxismo vivo, liberto de dogmas e de maldições, ao mesmo tempo que mantinha a mesma veia polémica. Para o estudo de Marx, Bensaïd  acrescentou novos contributos: O Sorriso do Espectro (2000), Marx ou os Hieróglifos da Modernidade (2001) e Elogio da Política Profana (2008). Para o debate, terçou armas com os defensores das intervenções militares «humanitárias» (Quem é o Juiz?, 1999, Contos e Lendas da Guerra Ética, 1999) e com os reformismos vários (Elogio da Resistência, 1998, A Esquerda Deles e a Nossa, 1998, Os Irredutíveis, 2001) e fez até um esboço de reflexão geracional autobiográfica (A Lenta Impaciência, 2004). Voltou sempre ao debate estratégico (Os Trotsquismos, 2002, O Novo Internacionalismo, 2003).

A polémica é a vida

Bem sei que a crítica da «crítica crítica» era em Marx uma metáfora para debates acesos contra os teóricos que se excluíam da prática política empenhada no socialismo e na luta de classes e que, por isso, os leitores mais atentos podem sorrir perante o título deste prefácio. Mas permitam‑me a liberdade de emancipar o termo da sua origem e de o fazer retornar ao efeito semântico pretendido, o do reforço da crítica.

Foi essa crítica, esse espírito polémico, esse legado político aprendido nos meios em que se formou – Bensaïd  foi um dos criadores e dirigentes do Movimento 22 de Março, com Cohn‑Bendit, e depois da JCR e da LCR – que cultivou ao longo dos tempos. Polémica para demarcar campos, polémica para estabelecer ideias, polémica para agrupar e aproximar, mas também polémica para explorar caminhos. A polémica foi a sua vida.

Neste seu Marx, Bensaïd desenvolve uma dessas polémicas, a que mobilizou contra Louis Althusser e o estruturalismo. Embora o nome apareça pouco neste livro e a referência fique perdida no passado, Althusser fora um dos alvos mais importantes da crítica anterior de Bensaïd: autor de referência do PCF e depois das correntes maoístas do seu tempo, Althusser construíra uma versão radical do velho estruturalismo francês para interpretar Marx e, em particular, para reclamar uma certa cientificidade do Marx de uma época de maturidade que romperia com a fase de juventude, irremediavelmente romântica (seria o caso dos Manuscritos Económico‑filosóficos, de 1844). Deste modo, o conceito de alienação era varrido deste marxismo estruturalista, que apresentava o edifício teórico como uma arquitetura autoritária de conceitos e de pilares definidores, um modelo de aprendizagem e de interpretação que logo foi replicado em diversos campos do saber, da sociologia à economia. Esse empreendimento reduzia o marxismo a uma mecânica imponente e, se criava escola, empobrecia a capacidade de entendimento dos processos históricos, em particular das grandes ruturas, do tempo novo.

Bensaïd, com Ernest Mandel e outros, dedicou‑se a destruir este edifício apático do estruturalismo e a demonstrar que não havia essa «rutura epistemológica» em Marx. A publicação tardia dos Grundrisse de Marx, um livro que ficou desconhecido até 1939 (as edições francesa e inglesa são só de 1968 e de 1973, respetivamente), demonstrou como Althusser simplificava a trajetória histórica do marxismo e ignorava as conexões profundas entre os vários momentos da escrita de Marx. Althusser tentou ainda um recurso último argumentando que a análise romântica dos Grundrisse contrastava com a cientificidade de O Capital, e que essa era a prova provada da «rutura epistemológica». No entanto, como Mandel demonstrou no seu estudo sobre O Capital, o fetichismo da mercadoria é claramente demonstrado em todos os estudos publicados por Marx até ao fim da sua vida. O Marx da maturidade era promotor de uma política emancipatória quente, que continuava a sua tradição de juventude e rejeitava o mecanicismo estruturalista de um marxismo frio.

O fetichismo da mercadoria e os processo de alienação que gera eram e continuaram a ser elementos decisivos para a compreensão tanto da produção mercantil generalizada quanto do efeito de hegemonia que cria em torno de si, e Marx nunca se separou dessa filosofia contra a alienação. Não há marxismo nem proposta revolucionária que não se defina e combata esse processo social de fetichização. 

Em Marx, O Intempestivo, essa polémica reaparece sob a forma da crítica (crítica) ao «marxismo analítico», a corrente de economistas e sociólogos norte‑americanos (Roemer, Elster, Olin Wright) que, depois de Althusser, aplicaram ao campo da análise empírica das economias e das classes os conceitos estruturalistas (pp. 165, 223). Este marxismo analítico propôs‑se retomar o individualismo metodológico da economia burguesa ortodoxa. Fê‑lo associando a sua teoria da justiça a um pensamento técnico sobre a distribuição equitativa, retomando assim a velha pergunta inquieta das doutrinas do equilíbrio: a relação salarial é uma relação justa, isto é, é entre equivalentes? Ou, do mesmo modo, o lucro é a retribuição justa do capital? E, sendo assim, como é que a distribuição pode ser mais justa do que esta justiça imanente ao capitalismo?

O marxismo analítico procurou responder a estas questões colocando‑se no terreno da teoria dos jogos, em que o individualismo é protocolar – temos agentes em jogo e seguindo regras bem definidas –, mesmo que se possam também simular situações de cooperação ou de estratégia. Mas são sempre indivíduos e estão em jogo como indivíduos. Preso nesta escolha, o marxismo analítico procurou dinamizar as pesadas estruturas de tipologias de classes, a arquitetura do estruturalismo, jogando ou fazendo os seus agentes jogarem nesta sociedade de jogo, como se fossem fantasmas num teatro de sombras.

Ora, como sublinha Bensaïd contra Eric Olin Wright, o mais criativo e interessante destes marxistas analíticos, o que interessa ao marxismo marxista, são os processos sociais e não tanto as estruturas que descrevem a sua estática. O equilíbrio, que é o colapso do tempo, não tem portanto qualquer sentido para uma crítica emancipatória, para os «saltos» que são impostos ao tempo. Por isso mesmo, nas Teorias sobre a Mais ‑Valia ou no capítulo inédito de O Capital, Marx criticava (surpreendentemente?) a Ricardo a sua fixação em três classes sociais (trabalhadores produtivos, capitalistas e proprietários fundiários), sem se aperceber do crescimento de classes intermédias e frações de classe, que examinou atentamente nos seus estudos históricos sobre a luta de classes em França. Esta perceção do processo – as classes são classes em luta de classes –, que é admitido, por exemplo, por Poulantzas, é a base para uma teoria social que não se prenda a uma tipologia empírica descritiva. A sociologia marxista é histórica porque quer perceber o que quer transformar.

Dois campos de análise: necessidade e possibilidade

Como Marx o fizera, Bensaïd utiliza o impacto da obra de Darwin para se interrogar sobre o sentido da necessidade e da contingência, que não se excluem (pp. 87 e 333-334), antes indicam como os campos das possibilidades são perturbantemente móveis. A compreensão do acontecimento na história depende sempre desta geografia da contingência e da necessidade. Mais ainda, a definição dos campos das possibilidades, a questão essencial da estratégia, depende precisamente desta geografia, como argumenta Bensaïd. Um mapa indica os caminhos.

Para apresentar as suas razões, Bensaïd  recorre a um dos seus autores favoritos, Espinoza. Este, como Leibniz, intuiu que a necessidade é diversa da fatalidade e que, na ciência como na vida social, a causa não é uma correlação, a consequência não segue sempre a sequência, a causa é antes uma produção: o mundo não é uma máquina, é, para o colocar nos termos destes precursores, uma força e um desejo. No mesmo sentido, como lembra Bensaïd, Hegel, na sua Lógica, tinha resistido à aplicação dos princípios mecânicos da causalidade aos mundos físico‑orgânico e espiritual, seguindo ainda os seus próprios termos. Assim, contra Newton e a noção de um tempo reversível ou de uma causalidade implacavelmente mecânica, repetível, e portanto uniformemente experimental, diversas heterodoxias ‑ religiosas (Espinoza), científicas (Leibniz) ou filosóficas (Hegel) ‑ afirmaram uma causalidade de processos seletivos, não lineares, de leis imanentes e tendenciais, de grandes perturbações e transformações (pp. 32, 285, 335-336) – os saltos no tempo.

Ora, esta é precisamente a escolha de Marx. Algumas das melhores páginas deste livro são aliás a introdução aos enigmas de O Capital, um livro difícil de ler porque se representa em diversos patamares. A sua chave, escreve Bensaïd, é precisamente a questão do tempo e da causa: o primeiro volume de O Capital é o do tempo linear e mecânico da produção, o segundo é o do tempo químico das permutações cíclicas, ou seja, da circulação, e o terceiro é o das relações sociais no tempo orgânico da reprodução, ou seja, da vida real na sociedade como um todo (p. 277). E só assim chegamos aos segredos do capital e do seu processo de reprodução alargada, o que não aparece na forma abstrata da mercadoria por onde começa Marx. 

A crítica que critica, de que este livro é um exemplo fulgurante, explora estes dois campos, o da necessidade e o da contingência. Estivesse limitado ao da necessidade e seria um discurso catastrofista ou impotente, se houvesse escolha entre estas duas faces da mesma moeda: a simples necessidade promete e exige sempre mais do que cumpre. Ora, o socialismo é uma necessidade e por isso é uma possibilidade, mas a possibilidade é uma rutura. A contingência, por seu turno, é distinta do acaso, como provou Darwin, ou como se provou provando o que Darwin ainda não podia saber: a seleção dos acontecimentos ocorre e depende do campo das possibilidades, mas começa fora dele. O que acontece e é contingente alarga esse campo, mas é por ele selecionado, tal como as mutações genéticas ocasionais são selecionadas na ecologia e determinam assim a evolução das espécies. Temos então um processo evolutivo sem destino marcado, sem agenda imposta, que pode escapar ao seu passado; temos uma causalidade aberta, perturbada por grandes acontecimentos que inovam e destroem.

Fazer na vida social e na luta de classes o que Darwin tinha feito na biologia, esse sonho de Marx aplica‑se exatamente ao pensamento crítico que é crítico. Marx, O Intempestivo é esse convite.