A teoria do fascismo em Léon Trotsky

Os artigos mais importantes de Trotsky sobre o ascenso do nazismo foram reunidos no livro "Como Vencer o Fascismo"

Entre 1930 e 1933, Trotsky escreveu muitos artigos sobre o ascenso do nazismo e as tarefas da classe operária para o travar. No livro “Como vencer o fascismo?” estão reunidos os mais importantes textos de Trotsky e publicamos a introdução a uma das edições, por Ernest Mandel


 

A teoria do fascismo elaborada por Léon Trotsky apresenta-se como um conjunto de seis elementos; cada elemento é provido de uma certa autonomia e conhece uma evolução determinada sobre a base das suas contradições internas; mas não podem ser compreendidas como totalidade fechada e dinâmica, e só a sua interdependência pode explicar a ascensão, a vitória, e o declínio da ditadura fascista.

  1. O ascenso do fascismo é a expressão da grave crise social do capitalismo de idade madura, de uma crise estrutural, que, como nos anos 1929-1933, pode coincidir com uma crise económica clássica de superprodução, mas que ultrapassa largamente tal oscilação da conjuntura. Trata-se fundamentalmente de uma crise de reprodução do capital, isto é, da impossibilidade de prosseguir uma acumulação “natural” do capital, dada a concorrência ao nível do mercado mundial (nível existente dos salários reais e da produtividade do trabalho, acesso às matérias-primas e aos mercados). A função histórica da tomada do poder pelos fascistas consiste em modificar pela força e violência as condições de reprodução do capital em favor dos grupos decisivos do capitalismo monopolista.

  2. Nas condições do imperialismo e do movimento operário contemporâneo, historicamente desenvolvido, a dominação política da burguesia exerce-se com maior vantagem – isto é, com os custos mais reduzidos – por intermédio da democracia parlamentar burguesa que oferece, entre outros, a dupla vantagem de desarmar periodicamente as contradições explosivas da sociedade por certas reformas sociais, e de fazer participar, diretamente ou indiretamente, no exercício do poder político, um setor importante da classe burguesa (através dos partidos burgueses, dos jornais, das universidade, das organizações patronais, das administrações locais e regionais, das cimeiras do aparelho de Estado, do sistema do Banco central). Esta forma de dominação da grande burguesia – em nenhum caso a única, do ponto de vista histórico1 – é, porém determinada por um equilíbrio muito instável das relações de forças económicas e sociais. Que este equilíbrio venha a ser destruido pelo desenvolvimento objetivo, e não reste mais à grande burguesia senão uma saída: experimentar, ao preço da renúncia ao exercício direto do poder político, instalar uma forma superior de centralização do poder executivo para a realização dos seus interesses históricos. Historicamente, o fascismo é portanto ao mesmo tempo a realização e a negação das tendências inerentes ao capital monopolista e que Hilferding, o primeiro a revelar, a “organização” de maneira “totalitária” a vida de toda a sociedade no seu interesse2 :realização, porque o fascismo preencheu essa função; negação, porque, contrariamente às ideias de Hilferding, ele não podia preencher essa função senão pela expropriação política completa da burguesia3.

  3. Nas condições do capitalismo industrial monopolista contemporâneo, uma centralização tão forte do poder de Estado, que implica além disso a destruição da maior parte das conquistas do movimento operário contemporâneo (em particular, de todos os “germes de democracia proletária no quadro da democracia burguesa” como Trotsky designa justamente as organizações do movimento operário) é praticamente irrealizável por meios puramente técnicos, dada a enorme desproporção numérica entre os salários e os detentores do grande capital. Uma ditadura militar ou um Estado puramente policial – para não falar da monarquia absoluta – não dispõe de meios suficientes para atomizar, desencorajar e desmoralizar, durante um longo período, uma classe social consciente, rica de vários milhões de indivíduos, e para prevenir assim qualquer avanço da luta de classes das mais elementares, avanço que só o jogo das leis do mercado desencadeia periodicamente. Para isso, é necessário um movimento de massas que mobilize um grande número de indivíduos. Só um tal movimento pode dizimar e desmoralizar a franja mais consciente do proletariado pelo terror de massa sistemático, por uma guerra de assédio e de combates de rua, e, após a tomada do poder, deixar o proletariado não somente atomizado no seguimento da destruição total das suas organizações de massa, mas também desencorajado e resignado. Esse movimento de massas pode, pelos seus próprios métodos adaptados às exigências da psicologia das massas, conseguir não somente que um aparelho gigantesco de porteiros, polícias, de células do NSBO4 e simples bufos, submeta os assalariados politicamente conscientes a uma vigilância permanente, mas também a que a parte menos consciente dos operários e, sobretudo, dos empregados, seja influenciada ideologicamente e parcialmente reintegrada numa colaboração de classes efetiva.

  4. Um tal movimento de massas não pode surgir senão no seio da terceira classe da sociedade, a pequena burguesia, que, na sociedade capitalista, existe ao lado do proletariado e da burguesia. Quando a pequena burguesia é atingida tão duramente pela crise estrutural do capitalismo de idade madura, que caia no desespero (inflação, falência dos pequenos patrões, desemprego massivo dos diplomados, dos técnicos e dos empregados superiores, etc.), é então que pelo menos numa parte desta classe, surge um movimento tipicamente pequeno burguês, mistura de reminiscências ideológicas e de ressentimento psicológico, que alia um nacionalismo extremo e uma demagogia anticapitalista5, violenta pelo menos em palavras, uma profunda hostilidade em relação ao movimento operário organizado (“nem marxismo”, “nem comunismo”). Desde que o movimento, que recruta essencialmente entre os elementos sem referência de classe da pequena burguesia, as suas ações e suas organizações, um movimento fascista nasce. Após uma fase de desenvolvimento independente, permetindo-lhe tornar-se um movimento de massas e de tomar ações de massa, ele necessita do apoio financeiro e político de frações importantes do capital monopolista para subir ao poder.

  5. A aniquilação e esmagamento prévio do movimento operário, quando a ditadura fascista quer cumprir o seu papel histórico, são indispensáveis, só se tornam possíveis porém se, no período precedendo a tomada do poder, o fiel da balança pende de maneira decisiva em favor dos bandos fascistas e em desfavor dos operários6.

O ascenso de um movimento fascista de massa é de certa forma uma institucionalização da guerra civil, onde, porém, as duas partes têm objetivamente uma oportunidade de ganhar (é a razão pela qual a grande burguesia não apoia nem financia tais experiências senão nessas condições completamente particulares, “anormais”, porque esta política de tudo por tudo apresenta incontestavelmente um risco à partida). Se os fascistas conseguem varrer o inimigo, isto é a classe operária organizada, a paralisá-lo, a desencorajá-lo e a desmoralizá-lo, a vitória está-lhe assegurada. Se, ao contrário, o movimento operário consegue repelir o ataque e a tomar ele próprio a iniciativa, ele infligirá uma derrota decisiva não somente ao fascismo mas também ao capitalismo que o engendrou. Isso deve-se a razões técnico-políticas e socio-psicológicas. À partida, os bandos fascistas não organizam senão a fração mais decidida e a mais desesperada da pequena burguesia (a sua fração “enraivecida”).

A massa dos pequenos burgueses, assim como a parte pouco consciente e desorganizada dos assalariados, sobretudo dos jovens operários e empregados, oscilará normalmente entre os dois campos. Eles terão tendência a se alinharem do lado daquele que manifestará maior audácia e espírito de iniciativa, eles apostam com boa vontade no único cavalo vencedor. É o que permite afirmar que a vitória do fascismo traduz a incapacidade do movimento operário em resolver a crise do capitalismo maduro segundo os seus interesses e objetivos. De facto, uma tal crise não faz, geralmente, senão dar ao movimento operário uma oportunidade de se impor. É somente quando ele deixa escapar esta oportunidade e a classe é seduzida, dividida e desmoralizada, que o conflito pode conduzir ao triunfo do fascismo.

f) Se o fascismo não conseguiu “esmagar o movimento operário de forma violenta”, ele cumpriu a sua missão na opinião dos representantes do capitalismo monopolista. O seu movimento de massa burocratiza-se e funde-se no aparelho de Estado, o que não pode produzir-se senão a partir do momento onde as formas mais extremas da demagogia plebeia pequena burguesa, que faziam parte dos “objetivos do movimento”, desapareceram da superfície e da ideologia oficial. O que não está de forma nenhuma em contradição com a perpetuidade de um aparelho de Estado altamente centralizado. Se o movimento operário foi vencido e as condições de reprodução do capital no interior do país modificaram-se no sentido que é fundamentalmente favorável à grande burguesia, o seu interesse político confunde-se com a necessidade de uma mudança idêntica ao nível do mercado mundial. A falência ameaçadora do Estado desenvolve-se igualmente. A política do tudo por tudo do fascismo é levada ao nível da esfera financeira, ateia uma inflação permanente, e, finalmente não deixa outra saída senão a aventura militar no exterior. Uma tal evolução não favorece de forma nenhuma o reforço do papel da pequena burguesia na economia e na política interior, mas pelo contrário, ela provoca a deterioração das suas posições (com a exceção da franja que pode ser alimentada com as prebendas do aparelho de Estado que se autonomiza). Não é o fim da “escravatura aos credores”, mas pelo contrário, a aceleração da concentração do capital.

É aqui que se revela o carácter de classe da ditadura fascista, que não corresponde ao movimento fascista de massa. Ela defende não os interesses históricos da pequena burguesia, mas os do capital monopolista. Uma vez esta tendência realizada, a base de massa ativa e consciente do fascismo retrai-se necessariamente. A ditadura fascista tende ela própria a destruir e reduzir a sua base de massa. Os bandos fascistas tornam-se apêndices da polícia. Na sua fase de declínio, o fascismo torna-se de novo numa forma particular de bonapartismo.

Tais são os elementos constitutivos da teoria do fascismo de Trotsky. Ela apoia-se na análise das condições particulares nas quais a luta das classes nos países altamente industrializados, se desenvolve quando a crise estrutural do capitalismo de idade madura (Trotsky fala da “época do declínio do capitalismo” e sobre uma combinação particular – característica do marxismo de Trotsky – dos fatores objetivos e subjetivos da teoria da luta de classes e na tentativa de influir na prática sobre ela.

Ernest Mandel


Tradução de Eduardo Velhinho


Versão original (em francês) aqui.


1 Somos sempre surpreendidos pela curiosa amnésia que atinge os ideólogos burgueses a propósito da história recente da sociedade burguesa. Nos dois séculos que seguiram a primeira revolução industrial, o Estado na Europa ocidental tomou o sucessivamente a forma da monarquia aristocrática, do cesarismo plebiscitário, do parlamentarismo liberal conservador (com o direito de voto limitado a 10% ou mesmo por vezes a 5% da população), da autocracia caracterizada, e isso, qualquer que seja o país estudado. A democracia de tipo parlamentar, baseada no sufrágio universal, é praticamente em todo o lado – com a exceção de um curto período durante a Grande Revolução francesa – uma conquista da luta do movimento operário e não da burguesia liberal.

2 Poder económico significa ao mesmo tempo poder político. Aquele que domina a economia e dispõe igualmente de todos os poderes do Estado. Mais a concentração na esfera económica é forte, mais a dominação sobre o Estado aparece como a cimeira da potência, o Estado apresenta-se como o instrumento insubstituível da manutenção da dominação económica… O capital financeiro sob a sua forma acabada é o grau superior da perfeição do poder económico e político entre as mãos da oligarquia capitalista. Ela finaliza a ditadura dos magnatas do capital” Rudolf Hilferding, Le Capital financier, escrito em 1909, Viena (edição da librairie du Peuple), pp. 476 e seguintes.

3 O que explica que Hilferding no fim da sua vida, na véspera da sua morte, seja chegado à conclusão errada que a Alemanha nazi não era uma sociedade capitalista, porque o poder pertencia a uma burocracia totalitária; esta conclusão errada é contemporânea da tese de Burnham sobre “a era dos gerentes”.

4 Nationalsozialistiche Betriebsorganisation: organização do partido nazi (NSDAP) nas empresas.

5 Todavia, trata-se sempre de uma forma bem precisa de demagogia, que não ataca senão certas formas bem precisa do capitalismo (“a escravatura aos credores”) os grandes armazéns, o capital “açambarcador” em oposição ao capital “criador”, etc.); a propriedade privada como tal e o poder do patrão na empresa nunca são metidos em questão.

6 Se tal não é o caso, se os trabalhadores conservam a sua combatividade e energia combatente, a tentativa de um movimento fascista de massa para se amparar do poder pode desencadear um gigantesco desenvolvimento revolucionário. Em Espanha, a resposta ao golpe militar fascista de Julho 1936 foi o levantamento revolucionário da classe operária, que, em alguns dias, infligiu aos fascistas uma esmagadora derrota militar nas grandes cidades e bairros operários, e forçou-os a recuarem para o campo. O facto que os fascistas, no seguimento de uma guerra civil renhida durante três anos, tenham finalmente conseguido emparar-se do poder, explica-se tanto pela intervenção de fatores exteriores assim como pelo papel trágico da direção do partido e do governo de esquerda, que impediram os trabalhadores de acabar rapidamente a revolução iniciada com sucesso; em particular, uma reforma agrária radical e a proclamação da independência de Marrocos teriam suprimido o último bastião do poder de Franco entre os camponeses atrasados e os mercenários do Norte de África.